Artigo originalmente publicado no site JusBrasil.
INTRODUÇÃO
Trata-se de resposta às indagações de alguns clientes sobre a possibilidade de revisão temporária do valor do aluguel comercial por conta das restrições de isolamento social impostas pelo Poder Público para conter a propagação da pandemia mundial do coronavírus, causador da Covid-19.
O objetivo deste parecer é expor os argumentos jurídicos práticos para refutar os argumentos defensivos e fundamentar o pedido de revisão, seja perante ao locador (ou imobiliária) ou na Justiça.
OS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS
O contrato de locação é bilateral, ou seja, atribui direitos e deveres tanto para o locatário como para o locador. Para este trabalho o mais importante é que o locador cede a posse do imóvel ao locatário, e este se compromete a arcar com o aluguel mensal mediante o direito de uso. A partir da contratação, o locatário pode usar o imóvel do jeito que lhe convier, nos limites do contrato, já que este pode, por exemplo, prever o ramo de atividade (alimentícia, comércio, etc.), proibir ou não a alteração do ramo, proibir ou não sublocação, etc. Certo é que o locatário não é obrigado funcionar regularmente, podendo fechar para obras, férias, usar o imóvel como depósito ou centro de distribuição, etc. (exceto em shoppings centers – que é um caso à parte em todos os sentidos).
Com efeito, o principal argumento contrário à revisão do valor do aluguel é justamente que o locador não é sócio do negócio do locatário, portanto seu direito de haver o aluguel integral independe do funcionamento do estabelecimento (uso), mas tão somente da cessão da posse. Há certa lógica prática em tal argumento, bastando vislumbrar que o aluguel não é isento ou afastado na hipótese de o negócio do locatário ir mal, “quebrar”, fechar, perdurando o valor e dever de pagamento até a efetiva devolução das chaves.
Neste diapasão, também não se pode olvidar que o imóvel continuará na posse do locatário durante todo o período do isolamento social de combate ao coronavirus, embora a empresa não esteja funcionando ou funcionando apenas parcialmente, aquele permanece sendo utilizado, no mínimo, como depósito de produtos, insumos, maquinário, móveis, etc. Da mesma forma, o locador está contratualmente impedido de oferecer o imóvel para uma empresa de serviços essenciais, que possa funcionar durante as restrições governamentais, e, assim, pagar o aluguel integral.
Os defensores desta corrente – advogados de locadores – afirmam que não haveria vantagem extrema para o locador, pois, embora o locatário esteja integral ou parcialmente impedido de exercer sua atividade, continua na posse do imóvel e o valor do aluguel continua o mesmo, o que afastaria a disposição literal do art. 478 do Código Civil, comumente suscitado nas discussões sobre a possibilidade ou não de revisão:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Ademais, o dispositivo legal supracitado, encontrado no Título V, Capítulo II – Da Extinção dos Contratos, Seção IV – Da Resolução por Onerosidade Excessiva, prevê a resolução, ou seja, a extinção judicial do contrato, o que não seria, em tese, o objetivo perseguido. Espera-se que o isolamento terminará e os negócios possam voltar em breve.
Outro dispositivo bastante comentado é art. 393 do Código Civil, que diz:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
A corrente defensiva acredita que a palavra “prejuízos” disposta na Lei diga respeito às consequências da inadimplência do devedor perante o credor, já que o artigo se encontra dentro do Título IV – Da Inadimplência das Obrigações, e no caso em análise, somente o locatário seria devedor, na medida em que o locador não faltou com qualquer obrigação contratual.
Por derradeiro, os locadores se agarram às recém alterações trazidas pela Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) no Código Civil:
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e
III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Trata-se da tentativa vil de ressuscitar o Princípio da Imutabilidade do Contrato, premissa maior num passado distante, equivocadamente baseada no Princípio da Autonomia da Vontade, que, em tese, impediria toda e qualquer revisão, mesmo que judicial, em detrimento dos atuais princípios e direitos constitucionais vigentes.
Num primeiro momento dá até para balançar, e quase ser convencido pela lógica prática do locador. É aí que entra o conhecimento da Lei e a expertise do advogado especialista em Direito Imobiliário.
A NOVA ORDEM DAS COISAS
A pandemia mundial da Covid-19 mostrou (mais uma vez) quão frágil é a capacidade da humanidade de conter a força da natureza, e quão egoísta pode ser o ser humano a ponto de dar mais importância à economia (governantes) ou seu ganho pessoal (indivíduos) em detrimento da saúde das demais pessoas[1].
Devido ao comportamento errático das pessoas e ou alguns governantes (no exterior, chefes de Poderes Executivos chegaram a pedir desculpas públicas[2] por não terem determinado o isolamento social horizontal[3] antes), a OMS – Organização Mundial da Saúde emitiu recomendação para o isolamento social. Seguindo tal recomendação, chancelada pelo Ministério da Saúde do Brasil, após ao reconhecimento do Estado de Calamidade Pública pelo Poder Legislativo[4], alguns governadores e prefeitos determinaram o isolamento social forçado, proibindo o funcionamento de atividades que não fossem consideradas essenciais[5]. Aqui no Rio de Janeiro, a Prefeitura editou o Decreto 47.282, de 21 de março de 2020, e o Governo do Estado o Decreto 46.966, de 11 de março de 2020.
Não se pode negar os efeitos catastróficos que a pandemia e as conequeências do isolamento prolongado irão ter na economia mundial. Empresas sem funcionar, pessoas sem perceber renda, inadimplência, queda vertiginosa na arrecadação de impostos, aumento de preços, escassez de alimentos e insumos, são apenas alguns. Tanto a doença quanto suas consequências são implacáveis, não distinguirão classe social, raça, credo ou mesmo idade. E o Judiciário não estará alheio a isso.
Na, já famosa[6], decisão de um juízo de São Paulo concedendo a liminar para reduzir o aluguel mensal para 30% do valor, MM. Juiz Fernando Henrique Biolcalti assim pontuou:
A pandemia do Sars-Cov-2 fará todos experimentarem prejuízo econômico, principalmente no meio privado. Cabe ao Poder Judiciário, portanto, intervir em relações jurídicas privadas para equilibrar os prejuízos, caso fique evidente que pela conduta de uma das partes a outra ficará com todo o ônus financeiro resultante deste cenário de força maior[7]
No mesmo sentido, o Excelentíssimo Desembargador Relator Eustáquio de Castro, do TJDF, em análise de recurso em ação análoga:
A Pandemia decorrente da circulação do vírus SARS-CoV-2, causadora da doença denominada COVID-19, é fato público e notório, dispensável de ser explicada.
Os seus efeitos espraiam-se sob dois aspectos: o da saúde, referente à alta morbidade da doença junto a grupos vulneráveis, levando as autoridades públicas, com base em manifestações de infectologistas e epidemiologistas, a determinar o isolamento social da população, de modo a não sobrecarregar o sistema de saúde e preservar vidas, núcleo fundamental de qualquer país democrático e com uma Constituição de cunho humanista.
O segundo aspecto, devido ao referido isolamento, é o econômico. Em razão das já mencionadas e necessárias medidas de isolamento social - até mesmo de lockdown - há um profundo abalo no funcionamento das economias, atingindo principalmente os empresários na área de serviços, profissionais liberais, trabalhadores informais, etc... As atividades econômicas são baseadas na troca de serviços, bens e circulação de capital e estão completamente imbricadas a relações jurídicas inúmeras. Em situações de crise econômica, em razão da disfuncionalidade das trocas, as relações jurídicas tencionam-se, deságuam em pretensões resistidas, e, ao fim, em causas levadas ao Poder Judiciário.
O Poder Judiciário deve ser fonte de Segurança Jurídica. Por isso, em termos ditos normais, tem de ser fiador da execução dos contratos, da execução de garantias, da estabilidade dos pactos, havendo a prevalência, pois, do Princípio da Obrigatoriedade dos Contratos.
Em situações como a presente, de calamidade, entretanto, o Poder Judiciário deve atuar de forma a mitigar as consequências da crise, distribuindo os prejuízos econômicos de forma adequada, de maneira a não agravar mais ainda a situação de depressão econômica[8].
Trata-se mesmo de Estado de Exceção, jamais visto antes e nunca previsto pelo legislador pátrio. Nessa toada, advirá uma grande onda de flexibilização do Direito Privado e a prevalência da aplicação de Princípios Constitucionais, sobretudo a Dignidade da Pessoa Humana e Solidariedade, para interpretação de obrigações no futuro próximo. Basta observar que juízes estão determinando a liberdade de pessoas do grupo de risco da Covid-19 que estavam presas, bem como devedores de alimentos e menores infratores. O Congresso Nacional tem projetos de leis que impedem liminares em despejos ou impedem o corte de serviços essenciais como energia elétrica, telefone e gás. O governo prorrogou o prazo de declarações e pagamento de tributos.
No mesmo sentido, tramita em caráter de urgência no Congresso Nacional o Projeto de Lei 1.179/2020[9] que prevê, justamente, a modificação emergencial e temporária de diversos direitos e deveres privados, tais como suspender prazos prescricionais e a eficácia de alguns dispositivos legais, proibir a concessão de liminares em processos de despejo, entre outros, e, mais importante, prevê a possibilidade de suspensão do pagamento do aluguel mensal em locações que sofreram desequilíbrio econômico. É ou não é uma nova ordem das coisas?
Enfim, existirá, pelo menos nos próximos meses, esta nova ordem do Direito Privado, interpretações flexibilizadas, economia fragilizada, vidas e finanças de pernas para o ar. Nunca foi tão necessária a cooperação e solidariedade entre as pessoas, meios alternativos de resolução de conflitos, o bom e velho diálogo mesmo. E é nessa nova ordem que temos que ter em mente ao discutir a possibilidade ou não da revisão temporária do valor do aluguel.
O DEVER ANEXO DA BOA FÉ E RENEGOCIAÇÃO
Antes de refutar os argumentos contrários à revisão do aluguel, é importante adiantar que a grande maioria dos especialistas do mercado imobiliário entende pela necessidade de abrir um canal de diálogo e negociação entre locatário e (imobiliária e) locador[10].
Acontece que, além do contrato de locação guardar direitos e deveres para ambas as partes, como dito acima, se faz necessário observar que todo contrato traz diversos outros deveres, mesmo que não estejam expressos em seu bojo. Denominam-se Deveres Anexos, os quais advêm dos Princípios da Boa Fé[11] e da Solidariedade[12].
Luiz Antonio Scavone Junior[13] ensina que “os negócios jurídicos, antes de qualquer princípio e antes mesmo da obrigatoriedade do que foi convencionado, devem respeito à boa-fé”. A boa-fé se divide em subjetiva e objetiva. A boa-fé subjetiva, segundo o mesmo autor[14], “traduz conduta psicológica do contratante, que acredita não estar prejudicando o outro. É a consciência de não prejudicar com a prática do negócio jurídico.” Já a boa-fé objetiva, consoante magistério de Flávio Tartuce[15], é “a exigência de conduta leal dos contratantes, relacionada com os deveres anexos ou laterais de conduta, que são ínsitos a qualquer negócio jurídico, não havendo sequer a necessidade de previsão no instrumento negocial”.
Como Deveres Anexos dos contratos, destacam-se o dever de cuidado em relação à outra parte negocial; dever de respeito mútuo; dever de informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio; dever de agir conforme a confiança depositada; dever de lealdade e probidade; dever de agir com honestidade; dever de agir conforme a razoabilidade, a equidade e a boa razão; dever de colaboração ou cooperação; etc.
Ante à Boa Fé, Solidariedade e Deveres Anexos dos Contratos, o art. 422 do CC apresenta o Princípio da Função Social do Contrato:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Este dispositivo legal não estaria apenas prevendo um princípio abstrato, mas sim uma obrigação das partes em negociarem, sobretudo com o advento de condições extremas, imprevisíveis na hora da contratação (pandemia mundial), por força de ato de terceiros (atos governamentais de restrição às atividades), que representam Caso Fortuito, ou da natureza (perigo de contágio e retransmissão de doença), que é Força Maior.
Vale lembrar o Enunciado 169 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo. Trata-se do subprincípio da Boa Fé Objetiva denominado Duty To Mitigate The Loss, ou Dever de Mitigar a Perda. Não é, pois, o caso de sequer de beneficiar-se da própria torpeza, ganhando pela inércia, mas a obrigação ativa de tomar atitudes que impeçam a onerosidade excessiva para a parte contrária, e, assim, o desequilíbrio contratual.
A primeira refutação aos argumentos da corrente defensiva, referente ao art. 478 do CC, sobre a incidência apenas em caso de resolução do contrato, é justamente baseada no dever anexo da solidariedade e cooperação, de onde deriva o dever de negociação acima mencionado, nos exatos termos dos art. 479 do CC e Enunciado 176 da III Jornada de Direito Civil do CJF:
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.
Enunciado 176 - Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.
O primeiro passo a ser dado no caminho da revisão do valor do aluguel em tempos de isolamento social forçado, e o inegável estado de exceção, seria a busca por diálogo, negociação, com o locador. E justamente por essa nova ordem do Direito Privado, em tempos de quarentena, ao meu ver, sequer seria exigida a ida a um Cartório para a utilização de notificação extrajudicial, podendo ser utilizados meios mais modernos.
Aliás, uma coisa boa que pode sair desta situação é a desburocratização da Justiça, com a aceitação de novos meios de provas e comunicação. Já chegam relatos da intensificação de tecnologias no Judiciário, como audiências virtuais, intimações eletrônicas, e conciliação por mensagens instantâneas, etc.
Justamente no sentido da imprescindibilidade da negociação entre as partes é a parte final da decisão do Desembargador Eustáquio de Castro[16], acima mencionada:
Conclamo as partes à autocomposição, pois elas mesmas têm o conhecimento exato de suas capacidades econômicas e de mitigação de prejuízo, para fins de manutenção, ao fim, do Contrato.
A INADIMPLÊNCIA DO LOCADOR
Se o locador (ou a imobiliária que o representa) restar inerte, recusar a negociação ou ficar irredutível em proposta fora da proporcionalidade e razoabilidade, estaríamos inexoravelmente diante de sua inadimplência, pela violação ao dever anexo de solidariedade, nos termos do Enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil do CJF: Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.
Assim, esta inadimplência do locador autoriza o cabimento do pedido judicial do reequilíbrio contratual consubstanciado na revisão temporária do valor do aluguel mensal. Nesse sentido, o Enunciado 26 da I Jornada de Direito Civil do CJF: A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes.
No mesmo sentido, o art. 480 do CC:
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
Ultrapassada qualquer dúvida sobre o cabimento da revisão judicial do contrato, desde que comprovada a violação pelo locador do dever anexo de negociar o reequilíbrio contratual, apresento os fundamentos para uma eventual revisão judicial.
A IMPREVISÃO
O fundamento principal para a revisão do aluguel é a Teoria da Imprevisão, que traz a possibilidade da revisão contratual quando, por motivo imprevisível e extraordinário, a relação contratual se desequilibre. Nesse sentido o art. 317 do CC:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
É inegável que a pandemia era completamente imprevisível, ainda mais o isolamento social imposto, e estes acarretaram a impossibilidade de o locatário continuar trabalhando normalmente, seja integral ou parcialmente, ensejando a diminuição abrupta de suas receitas, por outro lado, o aluguel contratado continua no mesmo valor, causando enorme desequilíbrio entre prestação e contraprestação. Destarte, o dispositivo legal acima autoriza a equalização judicial das obrigações.
CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR
Vislumbra-se Caso Fortuito na ação de terceiros, alheia à vontade das partes, mas que influenciem os efeitos do contrato. E dentro deste instituto, encontra-se o Fato do Príncipe, que se caracteriza pelo ato governamental geral, embora legítimo, atinge substancialmente a atividade econômica, dificultando ou impedindo sua continuidade. No caso presente, os Decretos Municipal e Estadual que restringiram o funcionamento de atividades não-essenciais e a circulação de pessoas são facilmente vislumbrados como Fato do Príncipe, ou seja, Caso Fortuito.
A Força Maior diz respeito à ação da natureza que venha atingir o negócio. Nesse sentido, resta inegável que a Pandemia Mundial da Covid-19 é uma crise sanitária sem precedentes, imprevisível, e que foi a mola propulsora para os atos governamentais restritivos. Sem contar que a própria necessidade de autopreservação do locatário, buscando evitar o contágio, também atingiria a atividade empresária.
Tanto os fatos de Força Maior, como os de Caso Fortuito, imprevisíveis, que causem desequilíbrio da relação contratual, são motivos bastantes para a revisão contratual judicial, nos termos do art. 478 e 479 do CC, e Enunciado 176 da III Jornada de Direito Civil do CJF, com base na Função Social do Contrato (art. 422 do CC), todos já transcritos acima.
Cabe salientar que o problema da expressão “extrema vantagem” do art. 478 do CC, reverberado pelos defensores dos locadores como requisito inexistente no caso da Pandemia, é resolvido facilmente com a indicação de inadimplência do locador referente ao Dever Anexo de negociação. Ademais, imperioso trazer à baila o disposto no Enunciado 365 da IV Jornada de Direito Civil do CJF:
Enunciado 365 – Art. 478. A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração de circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena.
A QUEBRA DA BASE OBJETIVA DO CONTRATO
A Base Objetiva do Negócio é caracterizada pelo conjunto de circunstâncias, vontades e condições existente no momento da contratação. Essa base é quebrada quando, durante a execução do contrato, a relação contratual se desequilibre, perca a equivalência entre prestação e contraprestação ou frustre a finalidade do contrato. Nesta corrente, amplamente aceita no Direito Alemão, bastaria o mero desequilíbrio superveniente do contrato, sem necessariamente de motivo imprevisível.
Indubitavelmente as restrições governamentais às atividades comerciais como medida de combate à Pandemia do Covid-19, como visto, atingiram mortalmente a receita do locatário, desequilibrando o contrato, alterando completamente as circunstâncias do momento da contratação.
Enquanto o Código de Defesa do Consumidor[17] abraçou expressamente a Teoria da Quebra da Base Objetiva, o Código Civil acabou por consagrar a Teoria da Imprevisão. Contudo, a Jurisprudência pátria vem usando recorrentemente a quebra da base, como violação à Função Social, para a revisão contratual, senão vejamos:
(...)a possibilidade de revisão judicial dos contratos de longa duração, com fundamento na
teoria da base objetiva, buscando a preservação do vínculo contratual (princípio da estabilidade dos pactos) e o restabelecimento do equilíbrio entre as prestações, afetado por fatos supervenientes que geram uma onerosidade excessiva para um dos contratantes, tem sido aceita, em situações excepcionais, pela jurisprudência desta Corte. (...) (STJ – REsp. 1.321.614 – Min. Rel. Paulo de Tarso Sanseverino, publicação: 03/2005).
AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. CONTRSTO DE FRANQUIA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. REFORMA PARCIAL. NEGÓCIO JURÍDICO ENTABULADO ENTRE AS PARTES PARA INSTALAÇÃO DE FRANQUIA NAS DEPENDEÊNCIAS DE EMISSORA DE TELEVISÃO. LOCALIZAÇÃO QUE FOI CAUSA DETERMINANTE PARA O NEGÓCIO. TODAVIA, A FRANQUEADORA FICOU RESPONSÁVEL PELA CONTRATAÇÃO DO PONTO COMERCIAL JUNTO À EMISSORA, DEIXANDO O FRANQUEADO EMTOTAL ESTADO DE SUJEIÇÃO. CLÁUSULA PROTESTATIVA PURA. ART. 122, CC. DISCORDÂNCIA, PELO AUTOR FRANQUEADO, QUANTO ÀS CONDIÇÕES DO CONTRATO DE COMODATO IMPOSTASPELA EMISSORA. QUEBRA DA BASE OBJETIVA DO NEGÓCIO. RESTITUIÇÃO DAS PARTES AO STATUS QUO ANTE. CONDENAÇÃO DA RÉ À DEVOLUÇÃO DAS PARCELAS PAGAS PELO AUTOR. DANO MORA, PORÉM, NÃO CONFIGURADO. RELAÇÃO ENTRE EMPRESÁRIOS EXPERIENTES. RISCO DO NEGÓCIO ASSUMIDO PELO FRANQUEADO. APELAÇÃO DO AUTOR PARCIALMENTE PROVIDA. (TJSP – Apelação cível 1030171-95.2015.8.26.0001 – 01ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Des. Rel. Alexandre Lazzarini. Julgamento 26.03.2018. Publicação 26.03.2018).
(...) Concluído um contrato, é sabido que o mesmo tem força vinculante, decorrente do princípio da obrigatoriedade da convenção. De acordo com esse princípio, aquilo que foi livremente contratado deve ser fielmente cumprido (pacta sunt servanda). Independentemente disso, nada impede possa o Juízo rever o conteúdo das cláusulas contratuais, sobretudo em razão da função social do contrato, prevista no art. 421 CC, quando inobservada, por uma das partes, a boa-fé objetiva, decorrendo daí quebra da base objetiva do negócio e da confiança.
O Poder Judiciário, nessas circunstâncias, pode reavaliar as cláusulas pactuadas e, fundando-se em princípios de direito, a exemplo do amparo do fraco contra o forte, pode afastar a obrigatoriedade do pactuado. É aplicação da cláusula rebus sic stantibus. (TRF – 3ª Região – Recurso Inominado 001351-33.2016.4.03.6303/SP).
Mesmo que se queira negar a incidência da Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio, por ausência de previsão expressa no CC, é importante comprovar sua ocorrência para o reconhecimento da Teoria da Imprevisão acima mencionada, nos termos da jurisprudência pacífica do STJ:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. TEORIA DA IMPREVISÃO E TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA. HIPÓTESES DE CABIMENTO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO NO INSTRUMENTO CONTRATUAL. SÚMULA 7 DO STJ. 1. Esta Corte Superior sufragou o entendimento de que a intervenção do Poder Judiciário nos contratos, à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes nas circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) ou de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva). 2. Na hipótese vertente, o Tribunal a quo ressaltou, explicitamente, que não pode ser reconhecida a imprevisão na hipótese vertente, em virtude de o recorrente ter pleno conhecimento do cenário da economia nacional, tendo, inclusive, subscrito diversos aditivos contratuais após os momentos de crise financeira, razão pela qual não seria possível propugnar pelo imprevisto desequilíbrio econômico-financeiro. 3. Nesse diapasão, o acolhimento da pretensão recursal, no sentido de reconhecer eventual onerosidade excessiva ou imprevisão, com o consequente desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, demandaria a alteração das premissas fático-probatórias estabelecidas pelo acórdão recorrido, com o revolvimento das provas carreadas aos autos, o que é vedado em sede de recurso especial, nos termos do enunciado da Súmula 7 do STJ. 4. Agravo interno não provido. (STJ - AgInt no REsp 1316595/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 07/03/2017, DJe 20/03/2017).
A DETERIORAÇÃO (DE USO) DA COISA
Um argumento “fora da caixa” que vem sendo suscitado na internet, em tempos de quarentena, artigos e lives desenfreadas, seria a aplicação por analogia à locação de imóvel comercial dispositivo legal incerto no capítulo de locação de coisas, o art. 567 do CC:
Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava.
A deterioração da coisa, aqui, seria entendida como deterioração do atributo de uso do imóvel, comprometido pelas restrições governamentais para combate do coronavirus.
Devendo sempre ter em mente os Princípios da Boa Fé, Solidariedade e a Função Social do contrato.
ADEQUAÇÃO E MODULAÇÃO DAS SOLUÇÕES AO CASO CONCRETO
Importantíssimo ressaltar que os argumentos e soluções aqui indicadas dependem de uma minuciosa due dilligence (devida diligência) sobre a situação fática de cada caso concreto. Isso porque nem todas as empresas foram atingidas uniformemente. Algumas atividades foram autorizadas a funcionarem com carga reduzida e ou por delivery, enquanto outras foram totalmente proibidas, mormente empresas que dependem de aglomeração de pessoas, como casa de shows, cinemas, teatros, etc.
Por outro lado, não concordo com as alegações majoritárias de que a revisão do valor do aluguel deve ser proporcional à autorização estatal para funcionamento. Alguns operadores do Direito vêm dizendo que se, por exemplo, o estabelecimento está autorizado a trabalhar com 30% de funcionários, a redução do aluguel ficaria em 70%. Mas se o comércio possui delivery estruturado, a redução deveria ser ínfima. Em minha opinião, a revisão contratual deverá estar atrelada à onerosidade excessiva, qual seja, a efetiva queda da receita.
Tenho clientes que possuem restaurantes no Centro do Rio de Janeiro. Proibidos de funcionar por causa do isolamento social forçado, correram para se cadastrarem em plataformas de delivery, contudo estes serviços tiveram um boom de pedidos de cadastramento, pelo mesmo motivo, e, assim, aumentaram os prazos para a efetivação do cadastro, atrasando o início das vendas. Outrossim, uma vez cadastrados, amargaram um número ínfimo de pedidos, já que as pessoas preferem pedir comida de estabelecimentos mais próximos de casa, do que esperar o pedido vir do centro da cidade.
Nesse diapasão, mesmo que o restaurante esteja autorizado a trabalhar com força de trabalho de 30% e ou esteja nas plataformas de delivery, sua receita está bem próxima de zero. Portanto, só a efetiva comparação entre a média da receita anterior com os ganhos após as restrições poderá servir de parâmetro para a revisão almejada.
O mesmo parâmetro da receita, além de ser mais justo, por representar a efetiva onerosidade no caso concreto, também ajudará no cômputo da duração da medida excepcional (revisão do valor do aluguel). Não se pode esquecer que a solução em comento é emergencial, mas temporária. Igualmente, não olvide-se que a economia demorará muito mais para se recuperar do que as medidas de quarentena.
Simplesmente devolver o contrato ao status quo ante no exato momento do levantamento das restrições governamentais, seria injusto, na medida em que levará algum tempo para o locatário perceber receita parecida com a média anterior ao lockdown, se isso vier a acontecer um dia. As pessoas estarão se adaptando aos novos tempos, ainda amedrontadas pela possibilidade de contrair a Covid-19. O vírus continuará entre nós. Uma vacina efetiva leva minimamente 2 anos para início da produção em massa. Mesmo depois do pico de transmissão, conviveremos muito tempo com o fantasma desta doença infernal[18].
O locatário deve continuar tendo as benesses da revisão temporária até se restabelecer uma nova média de faturamento, mesmo que seja modulada no tempo, por exemplo, a redução de 80% do aluguel até o fim da quarentena, alterando o desconto para 50% nos 2 meses seguintes, e para 80% nos 2 meses subsequentes, quando será possível auferir a nova medida de faturamento da empresa.
Por derradeiro, pode ser que ainda seja necessária uma revisão definitiva (não temporária) do valor da locação, após a verificação detalhada da nova economia, novos hábitos de consumo, que se formarão depois da Pandemia.
CONCLUSÃO
É perfeitamente possível a revisão judicial do valor mensal da locação comercial, com fundamento nos Princípios da Boa Fé Objetiva, Solidariedade e Função Social do Contrato, ante à quebra da base objetiva do negócio por acontecimento extraordinário e imprevisível (Pandemia da Covid-19), no esteio dos arts. 422, 317, 478, 479, 480 e 567 (por analogia), do Código Civil e Enunciados 24, 26, 169, 176 e 365, das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, desde que preenchidos os seguintes requisitos:
1. Comprovar a tentativa prévia de negociação e a recusa do locador em reduzir o valor em patamar razoável;
2. Informar as restrições governamentais para a sua atividade;
3. Comprovar o impacto da quarentena na receita da empresa;
4. Apresentar a média da receita antes da Pandemia;
5. Propor valor razoável e proporcional à queda do faturamento, tendo em mente o dever de cooperação entre as partes;
6. Procurar um advogado especialista em Direito Imobiliário para lhe assistir.
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Dr. Flavio Augusto Sampaio Martins (perfil)
Advogado e Perito Judicial, pós-graduado em Excelência em Direito Imobiliário, com mais de 20 anos de experiência na defesa dos interesses de empresários e empreendedores. Fundador do escritório jurídico SAMPAIO MARTINS Advocacia, www.sampaiomartins.adv.br, @sampaiomartinsadv
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Referências:
[1] Momento desabafo: Salienta-se que não importa quão baixa possa ser a taxa de mortalidade entre os mais novos, já que usar esse dado estatístico para desrespeitar o isolamento social é exatamente o mesmo do que dizer que a vida dos mais velhos não valem nada, que as pessoas com doenças respiratórias ou cardíacas preexistentes podem morrer em prol do capitalismo. [2] https://veja.abril.com.br/mundo/prefeito-assume-culpa-por-surto-de-coronavirus-e-se-oferece-para-renunciar/; https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/27/prefeito-de-milao-admite-erro-por-ter-apoiado-campanha-para-cidade-nao-parar-no-inicio-da-pandemia-de-coronavirus-na-italia.ghtml; https://oglobo.globo.com/mundo/como-demora-para-agir-avisos-ignorados-atrapalharam-luta-contra-coronavirus-em-nova-york-24359691. [3] Isolamento horizontal é para todos, enquanto o vertical é apenas para as pessoas fora do grupo de risco (idosos e pessoas com doenças crônicas preexistentes) da Covid-19. [4] Decreto Legislativo 6, de 20.03.2020. [5] Decreto (Federal) 10.282/2020. [6] https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/liminar-permite-reducao-aluguel-pago-restaurante-epidemia; https://www.migalhas.com.br/quentes/323789/restaurante-pagara-30-do-aluguel-durante-pandemia; etc. [7] Processo 1026645-41.2020.8.26.0100, da 22ª Vara Cível/Capital – SP. [8] TJDF, Agravo de Instrumento 0707596-27.2020.8.07.0000. [9] Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19) - https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141306. [10] https://noticias.r7.com/economia/especialistas-defendem-negociacao-entre-proprietario-e-inquilino-05042020; https://oglobo.globo.com/economia/coronavirus-inquilinos-ja-tentam-negociar-suspensao-descontos-no-pagamento-de-alugueis-24324861; https://m.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/ como-pagar-o-aluguel-durante-a-crise-do-coronavirus. [11] Código Civil, arts. 113, 187 e 422; e Código de Defesa do Consumidor, arts. 4º, III e 51, inc. IV. [12] Constituição Federal, art. 3º, I [13] Direito Imobiliário: teoria e prática. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 592. [14] Op cit. p. 593. [15] Manual de Direito Civil: volume único. 8. ed. rev, atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018. [16] TJDF, Agravo de Instrumento 0707596-27.2020.8.07.0000. [17] Art. 6º, V. a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas [18] Perdi um amigo querido, pai de uma grande amiga, para Covid-19, na cidade de São Paulo.
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